Três vezes inacreditáveis em que a arte irritou os muitos conservadores
Seja uma pedra, um filme mudo em preto e branco ou um galo ao contrário, a arte irritava a Liga Pela Moralidade Mineira
O cineasta norte-americano Charles W. Allen morreu sem saber que não era bem visto em Belo Horizonte. Outro nome dos Estados Unidos que entrou para o índice de artistas proibidos pela Tradicional Família Mineira é o do escritor e cineasta Francis Trevelyan Miller (1877 - 1959) — é melhor que ele nem ponha os pés aqui. No país natal, Miller é conhecido por livros de fotografia e história e também por escrever roteiros de filmes até importantes, mas que você certamente não viu.
Um filme da dupla causou rebuliço entre os conservadores de BH: Diana, a Caçadora, gravado em 1916 e com vinte e nove minutos de duração — os primeiros quatro minutos e treze segundos estão disponíveis no YouTube.
O filme começa com Diana, a deusa grega da caça e da pesca, na Lua. Ela quer voltar para a Terra, onde suas ninfas a aguardam. Na Lua, Diana usa um vestido branco que vai até o meio das canelas e deixa os braços à mostra. A divindade grega lança uma flecha, que cai na Terra e se transforma em flores: é a anunciação da deusa. Com dança e música, as ninfas comemoram. Pan, o deus grego dos pastores e dos caçadores, escuta a voz de Diana, partindo em busca dela.
Esse é o roteiro do filme que irritou a Liga Pela Moralidade Mineira, uma organização conservadora que zelava pelos bons costumes em Belo Horizonte. A Liga sequer entrou nas salas de cinema para avaliar o curta-metragem: a ordem de censura veio só pelo cartaz do filme. Uma mulher tão nua ser exibida em frente aos cinemas, tudo para vender ingressos? Não pode! Tirem esse absurdo de cartaz!
Com cerca de 20 mil habitantes e prédios que ainda cheiravam à tinta fresca, Belo Horizonte era uma das mais provincianas capitais brasileiras. A tentativa de censura artística ocorreu em 1920 (ou seja, três anos após a gravação do filme). Como muitas tentativas de censura parecidas, não deu certo. A Liga Pela Moralidade acionou o delegado de costumes e exigiu o poder de avaliar e vetar filmes, mas no meio do caminho estava o Carlos.
Uma pedra no meio do caminho
Carlos Drummond de Andrade, nascido em Itabira, em 1902, passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro, onde morreu, em 1987. Por uma década e meia, Drummond morou em Belo Horizonte: nem tantos anos, mas anos definidores. O começo da idade adulta, a faculdade, o namoro e o casamento. O primeiro filho, aquele que morreu minutos após nascer e que está enterrado no Cemitério do Bonfim, na época o único da capital mineira. E também a primeira crônica publicada num jornal.
A estreia do Drummond cronista aconteceu aos dezessete anos, no Jornal de Minas. No texto, ele abordou a polêmica envolvendo Diana, a Caçadora. Defendeu a liberdade artística e destacou que a moral é uma coisa relativa e que muda com o passar do tempo, mas não deixou de alfinetar o filme em si, que seria até ruinzinho.
Ao longo da década de 1920, o próprio Drummond enfrentou diversas vezes a fúria conservadora. Ele já era uma figura até conhecida (e polêmica) na cidade quando publicou o poema No Meio do Caminho, em 1928. O primeiro livro, Alguma Poesia, foi publicado pouco mais de um ano depois.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Criticado pela repetição excessiva e pela linguagem popular, Drummond foi marcado como futurista. Aos 78 anos, o poeta abordou o tema. A repórter Leda Nagle disse que ele tinha sido abraçado pela crítica desde sempre, sendo amigavelmente contestada:
— A crítica sempre foi muito favorável a você, não é?
— Não, não. Eu passei por um pedaços bem duros na mocidade. As pessoas eram muito contra mim. Achavam que eu fazia versos malucos, a pedra no caminho, que era doido, me chamavam de débil mental, etc. Eu trabalhava no Ministério da Educação e as pessoas perguntavam: como pode? Que exemplo esse homem vai dar para as moças?
O galo causou um ataque de fúria em Belo Horizonte.
Quase vinte e cinco anos após a polêmica envolvendo Diana, o galo foi responsável por dividir Belo Horizonte ao meio — e nada teve a ver com futebol. Nessa época, o Clube Atlético Mineiro sequer tinha a ave como sinônimo.
Mesmo assim, manifestantes invadiram o Edifício Mariana, no centro da cidade, e partiram para cima do galo. O ataque foi contra um quadro de Candido Portinari. A pintura mostrava um galo, mas a cabeça da ave estava retratada em posição irreal — sim, isso foi suficiente para gerar uma reação conservadora contra todo aquele progressismo.
Na imprensa, o quadro de Portinari era jocosamente chamado de Olag — galo ao contrário. Nas ruas, pichações tomavam as fachadas dos prédios da Avenida Afonso Pena, a mais importante de Belo Horizonte: abaixo os modernistas.
Uma revista do Rio de Janeiro registrou: “Reina um barulho tremendo em Belo Horizonte por causa de um galo. Não de um galo vivo. Nem morto. Um galo pintado. A opinião belo-horizontina está guerreiramente cindida em duas facções irreconciliáveis: a dos amigos e a dos inimigos de um galo”.
“Quem ri desse galo é fascista! Ser inimigo da arte moderna é fazer o jogo dos reacionários!”, declarou na mesma reportagem o diretor da Biblioteca Pública, José Guimarães Menegale.
Como eu já contei na carta do 360meridianos (vai lá ler), a polêmica envolvendo o galo de Portinari foi parte da Primeira Exposição de Arte Moderna, realizada em 1944, durante a prefeitura de Juscelino. Antes do evento, JK prometeu liberdade total de discurso. “Na rua, não garanto, mas no interior da biblioteca a palavra é livre”, disse o prefeito, que tinha sido nomeado pela ditadura Vargas.
A promessa foi cumprida: houve liberdade total por parte do governo e fúria por parte da população conservadora. Munidos de lâminas de barbear, manifestantes retalharam oito dos quadros expostos na mostra.
Seja uma pedra, um filme mudo e em preto e branco ou um galo ao contrário, a arte causa incômodo para os muitos conservadores. Como ensinou Drummond, a moral é um tanto relativa e (felizmente) envelhece.
Eu poderia fazer diversos parelelos atuais, muitos deles da Belo Horizonte de 2025, mas que às vezes parece ser mais tacanha que a de 1920, mas deixo isso para você.
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Sobre o autor: Sou escritor e jornalista de viagem. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”. Também participei das coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
Muito interessante, Rafael! Eu trabalho no "futuro" Centro do Patrimônio Cultural de Minas Gerais, no Prédio Verde da Praça da Liberdade. Nesse mês de julho vai ter uma oficina infanto-juvenil realizada por mim falando sobre literatura e patrimônio em Belo Horizonte, e ela foi inspirada nos seus textos, pois me fez enxergar um lado de BH para além da História (na qual tenho formação), me fez enxergar a literatura. Obrigado!
Chuta, chuta, chuta a família mineira. Hahaha