Todo avô é um livro infinito, toda avó é uma biblioteca
É clichê, mas a frase tem lá sua razão. Foi ouvindo e conversando com meus avôs que aprendi a contar histórias
Eu tinha dezesseis anos, o Ronaldo marcou o segundo gol do Brasil na final com a Alemanha e meu avô socou o céu. Fomos penta num domingo de manhã e, pelo menos naquela casa, só eu e meu avô nos importávamos. Minha mãe estava na igreja com minhas irmãs, minha avó estava no quarto e longe da TV. Do outro lado da cidade, meu pai também estava na igreja: outra fé, a mesma certeza: não se muda a hora do culto por conta de uma partida de futebol. Querendo participar da final da Copa, escapei da religião.
Meu avô materno, Húlvio, já lutava contra o câncer que o levaria embora pouco antes do Roberto Carlos ajustar o meião, o Galvão esbravejar e a França fazer o gol que tirou o Brasil da Copa seguinte, em 2006. Quando o Brasil perdeu, eu não pensei apenas no Vô Húlvio socando o ar quatro anos antes. Pensei também na briga em que ele se envolveu no colégio interno em que estudava, aos oito anos. Me lembrei das viagens que ele fez como piloto de avião. Minha memória visitou até o treinamento dele para participar da Segunda Guerra Mundial.
Também me lembrei do dia em que seu irmão mais novo tomou um tiro de chumbinho, numa brincadeira idiota de amigos, e morreu. Acho que esse meu tio-avó não tinha nem treze anos quando levou o tiro, uma tragédia que marcou a cidade e inaugurou o luto para a família inteira. Minha mãe nasceu mais de vinte anos depois disso; eu cheguei ao mundo quarenta e cinco anos após a bala acertar o pescoço do irmão do meu avô — e sequer sei o nome desse tio.
Apesar disso, a cena faz parte da minha memória: o rapaz escondido atrás de uma moita aguardando o ataque adversário, os dois armados com armas que não deveriam matar. A brincadeira de guerra, tão comum num mundo que enfrentava Hitler. O estampido, o sangue que jorra do pescoço, a mão que tenta segurar o rio. O adolescente que cai, o pai, médico, que vem correndo, impotente, para quase morrer também. Essa memória está em mim porque Vô Húlvio nunca conseguiu esquecê-la. Foi o que ele contou no intervalo de Brasil e Alemanha, sei lá a razão.
Eu sempre gostei de ouvir histórias. Por isso, acho que tenho facilidade para contá-las. Tive a sorte de conviver com meus quatro avós: Húlvio, Beatriz, Alexandre e Maura, minha avó paterna e com quem bato-papo todos os dias. Hoje, inclusive.
Dizem que todo idoso é uma biblioteca. É clichê, mas a frase tem lá sua razão. Com meus avós aprendi a história do Brasil e viajei o mundo, soube de contatos imediatos com seres extraterrestres e descobri que existem praias com areia das mais diversas cores, como contei nesse texto aqui, da newsletter do 360meridianos.
Porque essa é outra função que costuma ser dada aos avós: criar a imaginação dos netos. Apresentar um mundo fantástico e lembrar que o sobrenatural e o extraordinário estão em cada esquina.
Eu já contei em outra edição desta newsletter que estou escrevendo meu segundo romance. Assim como no primeiro livro, a história também se passa em Belo Horizonte. Não será um livro sobre luto, mas terá mortes, afinal elas fazem parte da vida. O título também já está definido: Os montanhistas serão sempre livres, frase que está escondida num dos mais conhecidos monumentos da capital mineira (quem sabe qual?), seguindo assim a lógica do primeiro livro, que se chama Dos que vão morrer, aos mortos. Frase e sentença que guardam o pórtico do Cemitério do Bonfim.
Eu estou escrevendo mentalmente o novo livro desde que entreguei o último, no meio de 2023. Hoje, passada a metade da tarefa e perseguindo o alvo de publicá-lo até o final deste ano, já sei do que o livro se trata: será um romance sobre um neto e seu avô. Um avô que se lembra de quando foi neto e um neto que cresce, envelhece e se torna um avô parecido com o seu.
Diversas pessoas já me perguntaram a mesma coisa: o que é real é o que é ficção em Dos que vão morrer? Eu digo que é tudo ficção, mas que isso não significa que as histórias narradas sejam 100% ficcionais. Muitas delas vieram do mundo real — de coisas que eu vivi, como a morte inexplicável da minha mãe, e de histórias que ouvi dos meus avós.
É de uma dessas histórias que falarei agora. Também vou apresentar um trecho (em construção) do meu próximo livro. A sequência deste email é uma recompensa para os assinantes pagantes desta newsletter. Quer me ajudar a seguir escrevendo? Migre seu plano. A assinatura básica custa apenas R$20 por mês.
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