Por que escrever sobre uma cidade?
Vou ministrar minha primeira oficina literária: Crônicas Urbanas — a cidade como protagonista.
Queimado pelo sol do sertão e exausto, o poeta cavalgava. Após rápida passagem pela vila de Venda Nova, ele cruzou um rio estreito, mas caudaloso, chamado Arrudas. Do outro lado, um vale imenso, cercado ao sul por uma cadeia de montanhas.
Com 1310 metros em seu cume, o chapadão era tomado por uma vegetação alta, de Mata Atlântica. No pé da serra o bioma começava a mudar, e surgiam as árvores menores e tortuosas do cerrado, que brotavam de uma terra vermelha, rica em óxido de ferro. Entre o poeta, que avançava em direção ao sul, e a montanha, que fechava o cenário como se fosse um anfiteatro, havia uma cidade.
O poeta era acompanhado por três homens. A comitiva seguia apressada, aqui e ali assustando codornas, que voavam para o mato. Quando chegaram na povoação, bateram a poeira avermelhada de suas roupas e foram para o hotel, onde almoçaram.
Essa viagem ocorreu em 1894. Dizem que a cidade que eles visitaram não existe mais, mas naquele momento ela existia há mais de 150 anos: era Curral del Rei. A vila foi demolida aos poucos ao longo dos anos seguintes, até sumir do mapa no dia 12 de dezembro de 1897, quando foi transformada em capital de Minas Gerais.
Se ainda sabemos de tantos detalhes daquela viagem é porque um dos quatro homens que cavalgavam pelo sertão mineiro era o carioca Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Sim, Olavo Bilac, cronista, jornalista e um dos mais importantes poetas brasileiros.
É de Olavo Bilac, na época um repórter do jornal A Gazeta de Notícias, uma das primeiras crônicas urbanas de Belo Horizonte.
“Escolhido o local para o novo centro administrativo deste incomparável Estado, levou-me a curiosidade a visitá-lo, para fornecer aos leitores da Gazeta notícia rápida de sua beleza”, escreveu o jornalista, em texto publicado no dia 26 de janeiro de 1894.
Para isso, ele e seus três companheiros viajaram por dias, combinando trechos de trem e de cavalo. Hoje, o percurso entre Ouro Preto e Belo Horizonte, que são separadas por apenas 95 quilômetros, pode ser feito de carro em pouco mais de uma hora, pela BR-356. Ao chegar em Curral de Rei, Bilac se impressionou:
“Supunha eu encontrar (...) uma ou duas dúzias de casas rústicas, num arraial quase morto, mergulhado num silêncio melancólico. Em vez disso, acho uma área povoada de mais de dois mil metros quadrados, em que levantaram talvez duzentas casas — comércio animado, lavoura, curtumes, igrejas, dois hotéis, população alegre, sadia, afável, obsequiadora sem aborrecer, discreta sem matutice, e — principalmente… muitas moças que nada têm de feias”.
Nos anos seguintes, Belo Horizonte teve inúmeros cronistas, que queriam registrar a audácia republicana de apagar uma vila e fazer nascer uma cidade. Arthur Azevedo e João do Rio estiveram aqui — o autor de A Alma Encantadora das Ruas flanou por Belo Horizonte e chamou a cidade de miradouro dos céus, impressionado com a explosão azul do céu do cerrado.
Machado de Assis nunca passou por Belo Horizonte, mas também escreveu sobre ela: ele não gostava do nome da capital de Minas. Mais tarde, Estanislau Fernandes e Abílio Barreto se juntaram ao grupo dos cronistas da capital mineira. O primeiro romancista também não tardou a aparecer. Foi Avelino Fóscolo, com o livro A Capital.
Nos anos 1920 vieram os modernistas, liderados por Drummond e mais tarde transformados em memória por Pedro Nava. BH ainda viu a passagem do Mário de Andrade, que aqui produziu uma de suas obras poéticas mais bonitas, O Noturno de Belo Horizonte.
Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos,
Calma do noturno de Belo Horizonte...
O silencio fresco desfolhadas árvores
E orvalha o jardim só.
Larguezas.
A lista de pessoas que escreveram sobre Belo Horizonte ainda inclui Henriqueta Lisboa, Fernando Sabino, Rubem Alves, Lucia Machado, Rui Mourão, Eduardo Frieiro, Juscelino Kubitschek, Conceição Evaristo, Lino de Albergaria e Autran Dourado, só para citar alguns nomes. Entre eles, o meu.
Comecei a escrever Belo Horizonte em 2015, com crônicas e contos publicados no 360meridianos. Em 2020, publiquei os primeiros contos curtos, em duas coletâneas da Editora Pangeia. Então vieram produções literárias para o Clube dos Autores e para o selo Grandes Viajantes. Meu primeiro romance ambientado em Belo Horizonte foi publicado em 2023, como já expliquei em outras edições desta carta.
O próximo, espero, chegará em dezembro.
Este texto ainda não acabou — é só rápida pausa para o jabá. Está gostando dessa newsletter? Então você pode me ajudar a seguir escrevendo:
Compartilhe esse texto no Substack (clique no botão acima).
Encaminhe este email para seus amigos.
Comente! Isso faz toda a diferença.
Compre meu livro. Peça por email ou no meu Instagram.
Considere migrar para um plano pago. Custa só R$ 20 por mês.
Já o mecenas literário, o plano mais abrangente, inclui de recompensa meu livro (exemplar físico e com dedicatória) e um passeio literário do BH a Pé ou uma oficina de escrita criativa (detalhes a seguir).
Por que escrever sobre uma cidade
Poucas cidades brasileiras foram tão escritas quanto Belo Horizonte — o Rio de Janeiro certamente, mas não sei se a capital mineira fica atrás de mais alguma.
Eu gosto de histórias que são ambientadas em lugares reais; de tramas que tornam as cidades protagonistas. A Espanha de Hemingway, o Rio de Machado de Assis, a Salvador de Jorge Amado e a Nápoles de Elena Ferrante.
Quando escolhi ambientar meu livro em Belo Horizonte, fiz isso por entender que a cidade explicava o personagem. Por acreditar que todos nós passamos por um processo de enraizamento e que é impossível viver num lugar e permanecer impune.
“Naquele dia percebi que ando entre fantasmas. Os meus, os dos outros, e que de mim eram só conhecidos, e aqueles que nunca existiram em lugar algum além da minha imaginação. Se subo o Tobogã da Contorno, trombo com minha mãe, que desce a avenida — foram tantos encontros ali, eu voltando da aula, e ela indo para a Savassi, que é impossível não a ver. Acostumei-me a observá-la toda vez que passava em frente à casa, da janela onde, sempre sorrindo, ela tanto me viu chegar. Olho para uma esquina, e ela está ali, com meus avós. Eles aparecem na Praça da ABC, na Feira da Bernardo Monteiro, na padaria da Rua Maranhão. Na Avenida Getúlio Vargas, na Praça da Liberdade e na sorveteria São Domingos. No boteco que virou hamburgueria artesanal e no clube que hoje é supermercado gourmet — memórias de um banho de piscina entre prateleiras e mercadorias. Tantas lembranças que, confesso, por alguns anos tive medo dessa parte da cidade. Passou o tempo, mas não as aparições, que só coloquei em outra gaveta, mais feliz. Hoje, se os encontro numa esquina qualquer, logo vem um sorriso involuntário. Se vejo minha mãe caminhando em frente ao Pátio Savassi, me alegro. Melhor viver entre fantasmas do que sem eles, e os meus habitam esse pedaço de montanha enforcado pela Serra do Curral e que atende por Belo Horizonte”. (Dos que vão morrer, aos mortos, Editora Urutau).
A Belo Horizonte do meu livro é real e também apenas minha, afinal envolve minhas vivências e meus fantasmas. Para construí-la, me inspirei em diversos autores e autoras que vieram antes de mim. O mais importante deles, como expliquei na última carta, é Pedro Nava. Dele, busquei as descrições e a sensibilidade, os barulhos e cheiros que recriam na literatura uma cidade não apenas de paisagens, mas sensorial.
O trecho abaixo fala da Rua Sapucaí, onde o personagem morava (e eu também morei):
“A presença da locomotiva é anunciada aos poucos, com o ruído riscado da fricção entre rodas e trilhos, um som que causa o mesmo arrepio de um garfo arranhando um prato vazio ou um giz gigantesco que escreve num quadro-negro. Ao passar em frente ao prédio, mais um barulho se somava à trilha sonora: o apito dado pelo maquinista, que indica que o trem vai parar na estação. Quando os freios pneumáticos são acionados, o som estridente da pressão dentro deles vence todos os outros, até que surge o choque metálico de centenas de vagões em parada”. (Dos que vão morrer, aos mortos, Editora Urutau).
Primeira oficina de crônicas urbanas
No dia primeiro de maio, feriado, vou ministrar a primeira Oficina de Crônicas Urbanas: Belo Horizonte como protagonista. As reservas são pelo Sympla ou diretamente comigo, no Instagram ou ao responder este email. Tem desconto de quase 25% no primeiro lote, mas só até essa sexta (18/4), às 18h.
O encontro será presencial, mas é possível participar remotamente. Detalhes no Sympla — lá você encontra também o calendário de caminhadas literárias do BH a Pé.
Abraço e até semana que vem!
Sobre o autor: Sou escritor e jornalista de viagem. Publiquei o romance Dos que vão morrer, aos mortos. Também participei das coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
Rafa, simplesmente adoro seus textos!!! Viajo para longe e me sinto literalmente tragada pela sua narrativa.
Lindo demais!!!!
Nem me atrevo a escrever mais, porque não me sinto à altura para expressar os sentimentos e pensamentos que me vêm com seus textos!!!
Abraços!!!!!