Em Belo Horizonte, Elvis e Frank Sinatra entram num bar alemão
Eu estava na Hofbrauhaus, a mais tradicional cervejaria de Munique, quando o Elvis me transportou para o último dia de felicidade.
Isso aconteceu ontem à noite. Enquanto o cantor lembrava que we can't go on together with suspicious minds, minha mente entrava num fluxo de consciência que rodopiou e rodopiou e rodopiou até me largar no dia 8 de janeiro de 2011.
Cenário: Cidade do Cabo. Montanha-mesa tomando conta da paisagem, praias de areia branca cheias de pinguins, ruas lotadas de turistas e cheiro de hambúrguer no ar. No palco montado de costas para o mar, outro Elvis cantava a mesma música, Because I love you too much, baby.
De volta à primeira viagem da minha vida, vi, sentado na cadeira de um bar sul-africano, um Rafael de 25 anos que tinha acabado de descobrir sonhos imensos — a vida presta, afinal de contas, como bem ensina Fernanda Torres.
Ontem à noite, quando o Elvis mineiro encerrou a música na Hofbrauhaus Belo Horizonte, única unidade da cervejaria alemã na América Latina, teve início a cerimônia mensal de abertura do barril. Meu trabalho ali era só filmar a Luísa, que recebeu uma torneira de metal, um martelo digno de Thor (ou da bandeira da URSS) e a missão de bater no barril de madeira até que o chope começasse a fluir.
Ela martelou uma, duas, vinte vezes, mas nada do barril ceder. A Luísa desistiu e passou o martelo quando eu ainda estava na Cidade do Cabo. Bati a primeira vez pensando na música do Elvis e na vontade que eu tive quando vi aquele pôr do sol, em janeiro de 2011: um desejo de viajar o mundo, sim, de realizar sonhos, claro, mas de fazer isso não apenas sozinho, não só com a namorada que me acompanhava na época, mas também com meu pai, minha mãe, meus avós, meu irmão e minhas irmãs.
Tive uma vontade gigantesca de compartilhar aquela felicidade. Eles também precisavam entender que a vida, essa megera, presta. Que viver não é só pagar boletos, sofrer por dinheiro, passar aperto com dor de dente, reclamar do trânsito e da hemorroida e da dor de coluna, só para voltar cansado do trabalho e precisando de cerveja.
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Só que, como você já sabe, aconteceu o contrário. Na manhã seguinte, quando eu ainda pensava em ligar para minha família e contar como a viagem estava incrível, o telefone tocou. Filho, eu tenho uma notícia muito triste para te dar. É a sua mãe. A sua mãe morreu. Minha felicidade acabou ali, com as frases do Elvis ainda dançando no meu ouvido e essas dezoito palavras para sempre gravadas em mim.
Não que eu seja triste. Sou muito feliz, garanto, mas o que morreu em 2011, junto com minha mãe, foi aquela felicidade boba, sabe? Aquela inocência infantil que acredita que tudo é possível, que nada dará errado e que a vida está aí para ser conquistada e vivida e gozada, basta a gente querer. Quando minha mãe foi atropelada por aquele caminhão, minha infância morreu junto com ela.
Eu pensava nisso quando comecei a martelar com mais força — vai ver até com um pouco de raiva. Foram treze marteladas até o barril, enfim, sucumbir. O chope começou a fluir, primeiro no chão e na minha camisa e cabelos e barba. Depois, na jarra de um litro que o CH, o dono da Hofbrauhaus BH, colocou na torneira. Recebi aquele litro de chope e dei o primeiro gole ainda pensando na África do Sul, mas de repente eu estava na Alemanha.
É que uma fila se formou, dezenas de pessoas querendo chope de graça, e logo todos estavam em cima das cadeiras cantando, em bom português: ein prosit, ein prosit, copos para o alto, exatamente como eu vi acontecer na Hofbrauhaus de Munique, em 2013, durante a Oktoberfest. Acho que aquela viagem marcou o final do meu luto, isso presumindo, claro, que o luto um dia acaba, o que é mentira: a gente só se acostuma com ele.
Em todo caso, naquele 2013 eu encerrei um longo ciclo de fugas. Após a morte da minha mãe, coloquei uma mochila nas costas. No bolso, o dinheiro da venda do carro e do FGTS e do seguro pela pelo fim dos quarenta e sete anos maternos. Assim, viajei por dois anos inteiros: vinte países e cinco continentes, até aquela Oktoberfest, quando percebi que já estava cansado de fugir e que era hora de voltar a viver em Belo Horizonte, mesmo que sem um pedaço de mim.
Na Oktoberfest de 2013, ao brindar pela última vez, cortei o dedo. A jarra que eu segurava se espatifou ao bater na jarra de uma amiga, deixando uma cicatriz em meu indicador direito. Ontem, ao sentar para comer o goulash e o schnitzel que tínhamos pedido, me vi acariciando essa cicatriz.
É incrível como a mente humana funciona. Basta um cheiro, uma cor, uma música: pronto, entramos num fluxo de consciência e de memórias que nos transporta no tempo e no espaço. Eu sempre gostei de Elvis — tenho, até hoje, um quadro dele na estante de casa. Mas a verdade é que essa música nunca mais significou a mesma coisa. Algo parecido acontece com Frank Sinatra, o músico favorito de meu avô.
Quando ele foi entubado na UTI, em agosto de 2023, foi o Frank quem o tirou do coma e permitiu nossa despedida. Mesmo há dias sem sedação, ele não reagia, até que meu celular começou a tocar baixinho, ao lado do ouvido dele.
And now, the end is near
And so I face the final curtain
My friend, I'll say it clear
I'll state my case, of which I'm certain
I've lived a life that's full
I travelled each and every highway
And more, much more than this
I did it my way
O coração do meu avô disparou e ele apertou minha mão. Minutos depois, abriu os olhos e sorriu. Ele não falou, mas a música foi o gatilho para um último despertar da consciência.
Como foram as últimas semanas
Sei que essa carta foi confusa, mas assim é a mente humana. Dito isso isso, algumas coisas que aconteceram nos últimos dias.
No dia 1º de maio ministrei minha primeira oficina: Crônicas Urbanas — BH protagonista. Confesso que fiquei absolutamente aterrorizado com a ideia de que dez pessoas pagaram para ouvir o que tenho a dizer. Aos leitores desta newsletter que estiveram lá, muito obrigado.
Perdeu? Vou fazer mais uma edição da oficina, mas agora online, para quem não mora em BH. Tem interesse? É só responder este email.
No dia 3 de maio ocorreu mais uma edição da caminhada literária Hilda Furacão. Eu já estava com saudade desse roteiro. No final do passeio, dediquei mais seis livros, o que fez do Café Palhares o local onde mais vendi e autografei livros — foram pelo menos cem exemplares naquelas mesas, mais do que em todos os meus lançamentos somados.
No dia 10 de maio, sábado, ocorrerá mais uma edição da caminhada literária e musical Esquinas do Clube. Detalhes no Sympla e no Instagram do BH a Pé.
No dia 17 de maio, também sábado, encerramos o mês com a Nostálgicos Futebol Clube, agora com uma nova parceira: as cervejas serão da Três Orelhas, de Gonçalves, no sul de Minas. Detalhes no Sympla e no Instagram do BH a Pé.
E a literatura?
Eu acabei de reler Becos da Memória, da Conceição Evaristo, e comecei a ler Sangue de Coca Cola, um dos raros livros do Roberto Drummond que ainda não conhecia.
Meu livro novo segue a caminho, mas pouco avancei ao longo das últimas semanas. Culpa de uma dor na lombar que impede que eu passe longas horas sentado. Em todo caso, mantenho a previsão: quero lançar até o dia 12 de dezembro, aniversário de BH.
Assim como o primeiro, este romance também será ambientado na cidade. Falarei um pouco mais sobre ele na próxima carta, que será exclusiva para assinantes pagantes.
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Sobre o autor: Sou escritor e jornalista de viagem. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, com mil exemplares vendidos. Também participei das coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.