Como transformei meu luto em literatura
Em 2011, durante as primeiras férias da minha vida adulta, minha mãe morreu. A partida dela, violenta e misteriosa, mudou minha vida. Em 2023, virou literatura.
Era um sábado de janeiro e eu não estava em Belo Horizonte. Estava do outro lado do mundo, cruzando fronteiras pela primeira vez, mas de alguma forma tudo o que aconteceu em casa virou memória dentro de mim. Quando fecho os olhos, vejo minha mãe fazendo almoço. Ela morava com minha avó, numa casa construída nos anos 1940 e que ficava num dos morros mais íngremes de BH — um lugar que até os moradores da cidade das ladeiras resolveram que merecia um título especial: tobogã. Tobogã da Avenida Contorno.
Na mesa, minha irmã do meio, na época com dezenove anos, esperava a comida ficar pronta quando o telefone tocou. Vejo a minha irmã se levantando da cadeira e indo até a sala. Vejo minha irmã tirando o telefone do gancho. Alô? Só um minuto. Mãe, é para você! Não sei quem é, um homem. Vai atender? Minha mãe pegou o telefone, conversou por alguns segundos e mudou os planos daquele sábado. Filha, você termina o almoço? Vou ter que sair.
Na bolsa vermelha, minha mãe levou a carteira de identidade, um monte de papéis com anotações diversas, uma Bíblia surrada e uma nota de cinquenta reais. Mamãe não tinha telefone celular, o que a deixava incomunicável quando estava na rua. Ela não voltou para casa naquela noite. Não voltou no domingo. Não voltou mais.
O corpo de minha mãe foi encontrado trinta e seis horas depois do telefonema. Numa beira de rodovia, em outra cidade. Ela tinha quarenta e sete anos — só oito a mais do que eu tenho hoje. Eu viajava pela África do Sul quando recebi uma ligação de meu pai. Nunca me esqueci das exatas quinze palavras que ele falou, cada uma delas engolida por um pedaço de choro. Filho, tenho uma notícia muito triste para te dar. É sua mãe. Sua mãe morreu.
Meu pai me ligou no dia dez de janeiro de 2011, por volta das nove horas da manhã, horário da Cidade do Cabo. Nesse dia minha vida mudou para sempre. Eu consegui chegar em Belo Horizonte na véspera do velório, o que não deixou de ser um alívio. Além da dor absurda, da culpa sem culpa, da saudade, da incompreensão, da revolta e do ódio, a morte da minha mãe teve uma série de consequências menos óbvias. A primeira delas? Eu, que adorava voar, passei a ter medo de avião. Passei a ter medo de viajar. Passei a ter medo de tudo.
Quando voltei ao trabalho, eu estava endividado, o que aumentou a minha insatisfação profissional. Nessa época eu trabalhava na Globo Minas. Entrei na empresa em 2008, como estagiário, e fui contratado cinco meses depois. Era a empresa dos meus sonhos, mas do nada aquele lugar me sufocava. Eu odiava estar ali.
Minha namorada e uma amiga tinham resolvido fazer um intercâmbio. Eu, que jamais tinha cogitado isso e até então estava feliz profissionalmente, resolvi ir junto. Pedi demissão, mas fui convencido por um chefe a transformar esse desejo em licença não remunerada. Em luto, fiz as malas e resolvi fugir. Espanha, Itália, França, Inglaterra, Índia, Nepal, Malásia, Tailândia, Cingapura, China, Indonésia, Nova Zelândia, Chile e Peru.
Um ano, quatro continentes, uma volta ao mundo completa com direito a trabalhar na Índia. A minha função lá era escrever, em inglês, textos. Não entendo nada de carros, mas fiz dezenas de textos sobre qual você deve comprar. Nunca pisei na República Dominicana, mas uma empresa da Índia me contratou para escrever trinta textos turísticos sobre o país. Sabe o lixo da internet? Aquele conteúdo que hoje é feito por IA? Aquele spam que chega no seu email? Era o que eu fazia.
Esse emprego foi a única forma de tornar a viagem possível — eu falei que a morte da minha mãe me deixou endividado, né? Além de contar com o salário indiano, antes de viajar vendi meu celtinha (quer dizer, a parte dele que já estava quitada), peguei um segundo emprego, esse num curso de inglês, fiz frilas de transcrição de reuniões de uma mineradora, organizei uma vaquinha, pedi um empréstimo para meu avô e, quando o dinheiro acabou no meio da viagem, foi salvo por R$ 4500 reais, a única herança que minha mãe nos deixou. Nessa época o dólar custava R$1,61. Ao longo de toda viagem, gastei cerca de R$25 mil.
Dessa viagem nasceu o 360meridianos, meu principal trabalho até hoje. Mas apenas recentemente entendi uma coisa que pode ter sido óbvia para quem viveu aqueles dias comigo: eu só viajei por causa do luto. Eu só topei morar na Índia por causa do luto. Eu só pedi demissão por causa do luto. Minha carreira — até então totalmente focada em televisão — mudou de rumo por causa do luto. Sem planejar, sem nunca ter imaginado isso, virei jornalista de viagem.
Nós morávamos em Chandigarh, uma cidade planejada da Índia e que, por isso mesmo, tem algumas semelhanças com Belo Horizonte. Meus colegas de intercâmbio, quase todos estrangeiros com vinte e poucos anos, queriam sair todos os dias. Queriam balada, boate, viagem, festa. Na maior parte do tempo eu só queria ficar sozinho. Eu só conseguia conviver com outros se essa relação fosse mediada por altas doses de álcool.
Entre a morte de minha mãe e a transformação do 360meridianos em um negócio, eu pedi demissão cinco vezes. Ao voltar para o Brasil, me mudei para São Paulo e trabalhei na Editora Abril. Eu odiava aquele lugar, mas aguentei por seis meses antes de também pedir para sair. Esse foi o emprego que aguentei por mais tempo. Dois chefes — eu soube disso por fofocas de escritório — diziam que eu sofria da tal síndrome da geração Y. O pior é que eu acreditei nisso: é melhor fazer parte da mais nova geração perdida do que assumir que a infelicidade vem do luto.
“O luto, essa planta suculenta, uma mãe-de-milhares que se reproduz infinitamente. Espalhada pelo sopro mais leve, capaz de brotar até na falha do rejunte dos azulejos e nutrida por uma gota d’água, logo ela toma conta do jardim. Sufoca todo o resto e, mesmo quando é arrancado do peito, o luto segue enraizado, pronto para ressurgir e virar solidão”.
O trecho acima é parte do meu livro, o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, publicado em dezembro de 2023 pela editora Urutau. A história é uma ficção e um exorcismo: ao escrever sobre a morte da minha mãe, me libertei. Ao transformar minha dor em literatura, tentei achar na ficção as respostas que nunca tive na vida real: como minha mãe morreu? Foi um acidente? Foi suicídio? Foi assassinato? O que ela estava fazendo em outra cidade? Como ela chegou lá? Quem era o homem que telefonou para ela?
Eu sempre quis ser escritor e cursei jornalismo para isso. O caminho mais curto, sabe? Quando a pandemia chegou, em março de 2020, eu achava que esse era mais um daqueles sonhos de infância que morrem quando chega a vida adulta. Crescer é fazer escolhas e abrir mão, é encarar as tais perdas necessárias.
Eu não falava sobre esse sonho profissional para ninguém. Nem para minha esposa, que conheci no final de 2015, quase cinco anos depois de perder minha mãe. Nem na terapia. Nem para mim. Só que a pandemia chegou e com ela veio o caos. Nessa época o 360meridianos já era uma empresa. Em dias, o vírus acabou com um trabalho de anos e deixou na mesa só o ócio e o medo.
Foi nessa época que comecei a ler os livros do Pedro Nava, talvez o mais importante dos memorialistas brasileiros. Foi nessa época que fiz um curso de autoficção com o Marcelo Rubens Paiva. Em quatro aulas, ele falou sobre Feliz Ano Velho e Ainda Estou Aqui. Em abril de 2020, trancado em casa e com medo até das embalagens de supermercado, comecei a escrever meu livro.
Escrever um livro sobre a morte da minha mãe — por mais que fosse uma obra ficcional — envolveu superar uma série de receios. As coisas ficaram mais fáceis quando achei, em meio ao baú de anotações que ela deixou, a frase abaixo. Anotado com caneta azul e na letra inconfundível dela, o bilhete me autorizava a transformar dor em literatura.
“O escritor baseia sua obra na vida, criando ou recriando fatos a partir da realidade. E passando impressões ao leitor, subjetivas ou não. Creio que ele tenha o direito de se inspirar onde quiser. Eu não tinha a intenção de causar polêmica, apenas de registrar fatos inacreditáveis e que certamente se perderiam com o tempo”.
A anotação da minha mãe, que também tinha o sonho infantil de ser escritora, virou epígrafe do livro. Usei várias frases dela para construir a personagem que leva seu nome, Laura. Ao achar a anotação acima, mudei a estrutura do romance, que passou a ser narrado em primeira pessoa. O personagem principal também mudou de nome: antes era Eduardo; passou a ser Rafael.
Resolvi adotar a mesma estratégia que Roberto Drummond usou em Hilda Furacão e Vargas Llosa em Tia Júlia. Fazer ficção, mas com doses de realidade tão grandes que o leitor ficaria em dúvida. Isso realmente aconteceu? Assim? Desse jeito? Onde termina o real e onde começa o imaginado?
Um ano e dois meses após a publicação, acho que a escolha foi bem sucedida. Até minhas irmãs, que viveram aquilo tudo de forma mais intensa do que eu, afinal não estavam viajando, ficaram em dúvida. Até elas me perguntaram o que era ficção.
Durante a pré-venda do livro, em setembro de 2023, resolvi contar a história no Twitter. Eu tinha 600 seguidores naquela rede e não poderia esperar o resultado: quase dois milhões de pessoas leram o fio, o que resultou num recorde (ainda não batido) nos lançamentos da Urutau.
De lá para cá, vendi cerca de mil exemplares. O livro não está disponível em livrarias, não é vendido na Amazon e não tem versão digital. Os mil exemplares que circulam por aí são físicos e nove em cada dez têm dedicatória. As vendas são quase todas feitas por mim (no próximo texto falarei sobre isso). Num país em que as pessoas leem cada vez menos, alcançar mil livros vendidos é uma vitória.
Dos que vão morrer recebeu comentários positivos de nomes importantes, como o escritor Xico Sá e o crítico Miguel Arcanjo Prado. Foi lançado na Academia Mineira de Letras, na Bienal de São Paulo e no Festival Literário de Itabira. Teve lançamento no Mercado Novo e na Arena Independência. Apesar disso tudo, a maior conquista desse livro é outra: escrevê-lo foi uma libertação; publicar essas páginas foi o meu exorcismo.
Cinco livros sobre luto que li, gostei e recomendo
As Pequenas Chances, da Natália Timerman — Li durante a pré-venda do meu livro e logo depois de perder meu avô. Fiquei impressionado com as semelhanças com o que senti, com os medos que tive. O luto tem seu repertório de gritos.
O Pai da Menina Morta, Tiago Ferro — Um pai perde a filha de oito anos para a influenza B. A narrativa é fragmentada e inclui a dor de outros pais que perderam seus filhos, do poeta Carlos Drummond de Andrade ao guitarrista Eric Clapton.
Morreste-me, José Luís Peixoto — Li este ano e gostei bastante. O escritor português fala sobre a partida do pai dele.
Triste não é ao certo a Palavra, Gabriel Abreu — Aqui o duplo é entre um filho e sua mãe.
Dos que vão morrer, aos mortos — se você ainda não leu meu livro, fica o convite. Custa R$60 e eu mando com dedicatória. Peça por email.
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Sobre o autor: Sou escritor e jornalista de viagem. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”, com mil exemplares vendidos. Também participei das coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
Saber que o celtinha, que te levava do coltec pro ouro preto (cerca de 3km no máximo), te fez viajar milhares de kms, me deu um quentinho no coração. Isso assumindo que estamos falando do mítico celtinha, doador de caronas mil, cabedor de centenas.