Cidades são como pinturas: existem em camadas
A ideia da cidade como camadas de uma pintura não é minha, mas de um dos meus escritores favoritos, o memorialista Pedro Nava.
Acordei com o desmonte do prédio. Três homens de capacetes vermelhos e um certo sadismo por barulho tiravam, com a sutileza de rinocerontes, o teto do edifício de três andares. Passei um café e fui até a varanda, para entender o que acontecia no outro lado da rua. Um capacete vermelho surgiu, e logo começou o estalar de caibros, ripas e terças. O telhado se moveu trovejando, um anúncio da tempestade de telhas que se estraçalharam no chão.
Foi só nesse momento que olhei para o quintal do prédio, onde há uma piscina enorme e duas edículas. Naquela manhã de sábado, a piscina estava vazia de água, mas cheia de cacos; as casinhas já tinham sido destelhadas. À tarde, não restava telha alguma no prédio e os homens começaram a demolir o parapeito da varanda. Na primeira marretada, me lembrei do baile funk.
A festa do fim do prédio
Há dois anos temos esse prédio como parte da nossa vista. Habitado por jovens, de tempos em tempos o edifício de três andares se enchia de música. A piscina, claro, era o ponto das festas, sempre barulhentas e invasoras da madrugada.
A comemoração de abril tinha sido a maior de todas: vozes que se erguem até o limite das cordas vocais, som colocado no máximo, pessoas que pulam de roupa na piscina e o cheiro de churrasco que toma conta do quarteirão. Ao olhar o desmonte do prédio, entendi o tamanho da festa — era uma despedida.
Vazio, o edifício Beira-Mar aguarda pelo fim.
Cidades são como pinturas: existem em camadas
A tela abaixo é do francês Édouard Manet (1832 - 1883) e faz parte do acervo do MASP. Olhe para a perna da mulher que está sentada na pedra: há, ali, um espectro de outra perna e outro pé. É a versão anterior que Manet fez para essa mesma pintura. Ele se arrependeu e pintou de novo, mas deixou a tentativa aparecer no resultado final.
Banhistas do Sena, 1874-76, Édouard Manet
A ideia da cidade como camadas de uma pintura não é minha, mas de um dos meus escritores favoritos, o memorialista Pedro Nava. Em 2020, quando a pandemia fechou o mundo, mergulhei na obra do Nava. Foi um assombro que mudou minha vida.
Por causa do Nava, nasceu o BH a Pé, projeto de caminhadas literárias e gastronômicas que busca desvendar as camadas anteriores de Belo Horizonte. O Nava foi também a minha maior influência para escrever meu livro, o romance Dos que vão morrer, aos mortos — não por acaso um dos personagens mais importantes se chama Pedro e a avó do narrador se chama Diva, nome da mãe do Pedro Nava.
Pedro Nava era de Juíz de Fora, passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro, morou no interior de São Paulo e viajou o mundo. Apesar disso, Nava se considerava belo-horizontino — ele viveu na cidade justo durante aqueles anos mais importantes e definidores: parte da adolescência, a juventude e o começo da vida adulta.
Médico, Pedro Nava começou a escrever depois da aposentadoria, aos 69 anos. Em suas memórias, ele ressuscita a Belo Horizonte dos anos 1920, com os renques de fícus que desciam avenidas, os sobrados de dois andares que tornavam a Rua da Bahia uma espécie de Lisboa e um clima provinciano e ao mesmo tempo efervescente. Assim era a BH da juventude de Drummond e Juscelino, de Guimarães Rosa e Aníbal Machado.
Ao escrever sobre o passado de BH, Pedro Nava revela as camadas de uma cidade que já não existe.
O edifício beira-mar
Foi só com a demolição que me interessei pelo prédio vizinho. Dia desses, dei de cara com a desconstrução. No alto da portaria, em letras pretas e desgastadas, ainda se lê um nome: Edifício Beira-Mar.
Um nome carregado de nostalgia e saudade do oceano, afinal um prédio em Belo Horizonte pode até ser beira-rio; consegue beirar a lagoa, mas definitivamente não o mar.
A suspeita veio como revelação. Corri aos livros do Pedro e, lá estava: o memorialista tinha morado bem ali, naquele exato ponto da avenida. Não nesse prédio, mas em outra camada, uma casa já demolida. Não tenho provas, mas sobram convicções de que o prédio que hoje está se extinguindo se chama Beira-Mar para homenagear a casa anterior, onde Pedro Nava morou. É que Beira-Mar é o nome de um dos livros do memorialista, justo um em que Belo Horizonte aparece bastante. A cidade em camadas.
“À medida que o tempo passa, a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais: através de um vestido de mulher surge uma árvore, uma criança dá lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar aberto. Isso se chama Pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de ideia. Talvez se pudesse dizer que a antiga concepção, substituída por uma imagem ulterior, é uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde”.
Pedro Nava, Galo das Trevas
Para ler Pedro Nava:
São seis livros de memórias, publicados nessa ordem: Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas e O Círio Perfeito. Há ainda um sétimo livro, que teve publicação póstuma e incompleta: Cera das Almas.
Para quem já leu Pedro Nava, recomendo fortemente o livro Vísceras da Memória, de Antônio Sérgio Bueno, que faz uma análise da obra do memorialista. Foi ali que entendi a ideia de pentimento.
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Sobre o autor: Sou escritor e jornalista de viagem. Publiquei o romance “Dos que vão morrer, aos mortos”. Também participei das coletâneas Micros-Uai, Micros-Beagá, Crônicas da Quarentena e Encontros. Siga-me no Instagram: rafaelsettecamara.
Muito interessante, Rafael! Parabéns!