A memória se parece com as raízes de uma árvore monumental
Quando ando por minha cidade, vejo não apenas o que há, mas também o que já não existe lá fora, mas grita dentro de mim
Antes, aquela árvore era minha mãe. É um fícus com raízes que levantam a calçada e invadem o asfalto da avenida. Ele virou minha mãe em 1994, mas ainda está lá, caso você queira vê-la: fica na Avenida Francisco Sales, 898, a poucos metros de um hipermercado da região hospitalar de Belo Horizonte. Quando eu tinha oito anos, aquela árvore se tornou minha mãe comprando uma televisão.
Minha mãe, Laura, se casou cedo, engravidou cedo e começou a vida profissional tarde. No primeiro emprego estável, quando mamãe tinha trinta anos e eu oito, ela resolveu cometer um luxo: comprar uma TV. Fomos ao hipermercado, ela escolheu um aparelho da Philips de 29 polegadas — não disse que era um luxo? — e nós voltamos para casa, que ficava na Avenida do Contorno, de táxi. Ao entrar no carro, vi a árvore. O tronco imenso que retoma para si o espaço roubado pelos pedestres, as raízes que descem em tubos e se enrolam escultura. A sombra de dez árvores numa só.
O fícus cresce rápido e, quanto maior ele for aos nossos olhos, mais gigantesco é seu corpo subterrâneo. Embaixo da terra, as raízes do fícus cruzam avenidas, enforcam canos, entortam casas e invadem piscinas. Dizem que o fícus chega a roubar água, causando um aumento nas contas que é difícil de ser diagnosticado e resolvido. Usado na arborização de muitas cidades, como Belo Horizonte, o fícus é a selva estranguladora. Lembra uma floresta do sudeste asiático, prédios seculares que pouco a pouco vão sendo engolidos por árvores monumentais. Sabe aquelas fotos famosas dos templos do Camboja? Prazer, fícus. Ele se tornou minha mãe.
Acho que a memória se parece com as raízes de uma árvore. Uma coisa sem importância acontece, a vida segue, passamos anos sem pensar naquilo, e de repente aquele momento volta: pode ser um cheiro, uma luz, uma frase, um clique e somos transportados para o passado.
Eu tenho uma certa obsessão com as cidades e a memória, em especial com a terra onde nasci e vivi a maior parte da vida. A poeta Henriqueta Lisboa explicou isso em “Belo Horizonte Bem querer”. Para ela, as cidades são muito parecidas e o que as diferencia está na gente, no que nós vivemos e projetamos nelas.
Uma cidade se assemelha às outras
porém se a amamos é única:
tem a forma de um coração
traz nosso aroma predileto
é a paina do travesseiro
em que repousa a nossa fonte.
Belo Horizonte bem querer.
Belo Horizonte faz esse papel em mim, mas para você pode ser outro lugar. Joguei bola nas ruas de paralelepípedos da Pampulha, brinquei no Parque Municipal, fui com meus avós na padaria da esquina e estudei num colégio na avenida que chamamos de Catalão, mas que se chama mesmo Carlos Luz. Comecei relacionamentos, fiquei bêbado e enterrei amores e vidas inteiras neste solo.
Quando ando por minha cidade, vejo não apenas o que há, mas também o que já não existe lá fora, mas grita dentro de mim. Por vinte anos, toda vez que eu encontrei aquele fícus, imediatamente eu voltava a ser criança, minha mãe ao meu lado comprando uma TV, nós juntos e felizes e realizados esperando um táxi. Até que outras coisas aconteceram.
Em 2014, me mudei para a Rua Sapucaí, no Floresta, bairro próximo ao centro da cidade. Passei a cruzar a Avenida Francisco Sales a pé várias vezes por semana, passos que levam ao supermercado, ao médico, ao bar… Eu mobiliava meu primeiro apartamento, um relacionamento de sete anos tinha terminado e outro se anunciava no horizonte, embora eu ainda não soubesse disso. Minha mãe já era memória e toda vez que eu passava pelo fícus, ela surgia feliz.
Quando me mudei do Floresta e esse deixou de ser um caminho diário, a surpresa: aquela árvore já não era apenas minha mãe. Se eu passava por lá, a tarde em que compramos televisão surgia, claro, mas também o Rafael de vinte e oito que vivia sozinho com um cachorro, o Whisky, e tentava superar o luto pela morte da mãe, que partiu de forma violenta e sem explicação.
Em 2023, já casado e morando em outro bairro, a Avenida Francisco Sales só era caminho para as consultas veterinárias do Whisky, que até hoje são na mesma clínica do Floresta. Eu dirigia pela avenida com ele quietinho no banco de trás, língua que enche de saliva o corsa preto. Num relance, vi o fícus: minha mãe, a televisão e eu aos vinte e oito anos indo ao supermercado. O Whisky tomou a vacina para leishmaniose e voltamos para casa. Mesmo caminho, de novo o fícus, mesmas memórias.
Em casa, enquanto eu e Luísa conversávamos, o Whisky começou a se coçar. Ele coçava e tossia e arfava. No primeiro vômito, a certeza: crise alérgica. Como? Se ele já tomou essa vacina tantas vezes? Corre para o carro, acelera na avenida, o cachorro cada vez mais agitado no banco de trás, a cara dele cada vez maior, o respirar cada vez mais ameaçado. Buzina, grita, dirige feito um louco. Ao passarmos pelo fícus, minha mãe não estava lá: só o Whisky e a emergência. Só o Whisky e o medo. Chegamos na clínica e a médica, que já tinha sido avisada, deu a medicação em segundos. Uma hora depois estávamos em casa e o Whisky parecia nem se lembrar do susto. Para mim e para a Luísa, aquela avenida virou nosso cachorro sem ar. Fícus estrangulador.
Há exatamente dois anos, eu, Luísa e Whisky nos mudamos de novo para o Floresta. Aquele voltou a ser o caminho de todos os dias e as memórias se somaram: cachorro, mãe, juventude. Em abril de 2023, a anemia do meu avô piorou e ele teve que fazer várias aplicações de noripurum, remédio venoso que só é dado em hospitais e clínicas. Por dois meses, peguei ele na Pampulha e cruzei a cidade de carro. Ao passar pela avenida, ele viu o fícus.
— Rafa, olha o tamanho daquela árvore! Ela deve estar aí desde que eu era criança.
A catarata deixava o mundo embaçado e meu avô odiava sair de casa para ir ao médico, mas acho que ele gostava de rever a cidade. Sinto saudade da Belo Horizonte do meu tempo, ele disse. É mesmo, vó? Do que você sente mais falta? Dos bondes, das praças. Da gente brincando nas sombras dos fícus da Afonso Pena, era uma maravilha. Andei tanto ali com meus pais. Um crime terem cortado. Você sabe que aquela árvore é um fícus, vô? É? Então foi por isso que eu lembrei.
Nas semanas seguintes, fizemos aquele caminho cinco vezes. Quando nos aproximávamos da região hospitalar, eu e ele já estávamos ansiosos, olhos que buscam nossa árvore. Vovô morreu pouco depois: a anemia grave guardava um linfoma agressivo e terminal.
Antes, aquela árvore era só minha mãe e uma televisão ainda na caixa. Depois, foi minha juventude e meu cachorro sem ar. Hoje, é também meu avô no banco do carro. É vovô brincando nas sombras gigantescas de uma selva urbana.
Já escrevi cem páginas do meu novo livro
O meu primeiro romance foi publicado em 2023, pela Editora Urutau. O livro se chama Dos que vão morrer, aos mortos. É uma ficção, mas trata do luto real pela partida da minha mãe. Em janeiro de 2011, ela recebeu um telefonema, largou as panelas do almoço no fogo, saiu de casa e nunca mais voltou. O corpo dela foi encontrado em outra cidade, na beira de uma rodovia, trinta e seis horas depois.
Desde a publicação do meu livro, muita gente me pergunta o que é real e o que é ficção naquela história. Então vamos lá: minha mãe morava mesmo na Avenida do Contorno, eu morei na Rua Sapucaí e ela realmente morreu da forma narrada no começo do livro, que é uma tentativa de elaborar e superar esse luto. A literatura como exorcismo.
Quer meu livro? Custa R$60 (mais R$10 de frete dos Correios) e eu te mando com dedicatória. É só responder este email dizendo seu endereço.
O próximo livro já está a caminho: Os montanhistas serão sempre livres. A história é uma celebração da vida, um livro sobre infância e sobre crescer, que fala de um menino e de seu avô. Assim como Dos que vão morrer, meu novo romance é ambientado em Belo Horizonte, entre 1935 e 2023. Uma vida humana inteira.
Vou contar mais sobre o novo livro na próxima newsletter, com alguns trechos que estão (quase) prontos. Quer me ajudar a seguir escrevendo? Então:
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Quero criar um clube com encontros mensais que abordará livros de ficção com histórias ambientadas em cidades reais. O crime que acontece na Avenida Afonso Pena. O casal que se beija num parque da Pampulha. A história que se desenvolve em ruas conhecidas ou que podemos conhecer.
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O que li (e recomendo)
Copo Vazio, da Natália Timerman. Da mesma autora, gostei muito de As Pequenas Chances, que também é uma elaboração de luto, pela morte de um pai. Copo Vazio fala de uma mulher que sofre um abandono afetivo.
Um Artista Aprendiz, do Autran Dourado. Esse foi o sétimo livro do Autran que li. Um dos grandes escritores brasileiros do século 20, ele passa por um esquecimento injusto. Venceu os prêmios Camões, Jabuti e Machado de Assis e faz parte da coleção de Obras Representativas da Unesco. Neste livro, que é ambientado na Belo Horizonte dos anos 1940, Autran narra a vida de um jovem escritor em busca de sua arte.
Estado Febril, livro de poesias da Thaís Campolina. Ela é de Divinópolis, terra da Adélia Prado, aquela moça que, segundo o Zema, trabalha numa rádio. A Thaís vai lançar o novo livro em Belo Horizonte: é neste sábado (15/03), às 10h, na Papelaria Mercado Novo. Passa lá!
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Opa! Gostei!!! Celebração a vida! Infelizmente tudo passa muito rápido.